Tragédia em Santa Catarina


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Na era das grandes navegações, a palavra "procela" entrou para o vocabulário da língua portuguesa. Procelas são as fortes tempestades que se formam em alto-mar. Na semana passada, uma procela se adensou, não sobre o oceano, mas nos céus da próspera Santa Catarina. Quando ela despencou sobre as cidades, foi com uma fúria e constância jamais vistas, mesmo numa região historicamente sujeita a precipitações caudalosas e enchentes. Apenas na Blumenau dos laboriosos imigrantes alemães, caíram, em cinco dramáticos dias, 300 bilhões de litros de água. Sim, bilhões – o suficiente para abastecer a cidade de São Paulo durante três meses. Outra comparação é ainda mais impressionante: se esse volume hídrico fosse despejado dentro de uma torre com uma base de 1 metro quadrado de área, a construção teria de ter 300.000 quilômetros de altura – quase a distância entre a Terra e a Lua. A primeira das mais de 100 vidas ceifadas por tamanho horror foi a da menina Luana Eger, de 3 anos. No sábado 22, um barranco deslizou sobre a casa em que ela morava, soterrando-a. A mãe de Luana, Virgínia, e seus irmãos Juan, de 7 anos, e Rafael, de 5, escaparam da morte. Seu pai, o comerciário Evandro Eger, estava fora da cidade quando soube do desastre. Restou-lhe comprar num supermercado o vestido cor-de-rosa com o qual enterrou a filha no dia seguinte. "Era a cor preferida dela", disse ele. Evandro e Virgínia ainda conseguiram dar um funeral razoavelmente digno à menina. Muitas das vítimas foram enterradas em caixões improvisados, e nem sempre em cemitérios, mas em quintais. Até sexta-feira, dezenove pessoas continuavam desaparecidas. Boa parte delas pode ter sucumbido em decorrência de afogamentos e dos 4.000 deslizamentos registrados no estado. Somados, desabrigados e desalojados chegam a 79.000. Dos 293 municípios do estado, 49 foram atingidos. Catorze deles decretaram estado de calamidade pública. Nessas cidades, os sobreviventes lutam contra a fome e doenças pestilentas. E, como se não bastasse a desgraça, tentam evitar saques no que sobrou de suas casas e negócios.
Foi a maior calamidade já ocorrida em Santa Catarina, que registra grandes enchentes desde 1852. Em que pese o que possa ter havido de desídia ou incompetência por parte das autoridades na prevenção da tragédia, ela foi, sobretudo, resultado de uma combinação catastrófica de dois fatores – um meteorológico e outro geográfico. O primeiro começou a tomar forma no dia 20 de novembro, quando um anticiclone estacionado em alto-mar, na altura do Rio Grande do Sul e do Uruguai, levou chuvas para o litoral catarinense. Anticiclones são sistemas de alta pressão que, no Hemisfério Sul, originam ventos em sentido anti-horário. Eles são comuns no litoral catarinense e no gaúcho, de onde sopram ventos do Oceano Atlântico em direção ao continente. Isolados, não têm a força de causar grandes estragos e sua duração numa mesma região não costuma ultrapassar três dias. Só que, desta vez, por causa de um bloqueio atmosférico, isso não ocorreu. Até sexta-feira, o anticiclone permanecia no mesmo lugar. Ainda que extraordinária, sua longa permanência não teria causado a tragédia não fosse o fato de um segundo fenômeno – o vórtice ciclônico – ter ocorrido simultaneamente a ele. Ao contrário do anticiclone, o vórtice ciclônico é um sistema de baixa pressão que atrai ventos e gira no sentido horário. Como indica o nome, ele funciona como um redemoinho em altitudes médias, e também não é um fenômeno estranho à região. O problema surgiu da combinação com o anticiclone: o vórtice ciclônico suga os ventos imediatamente abaixo dele, levando-os para cima, resfriando-os e – de novo – provocando chuvas. Foi assim, por meio da ação extraordinariamente simultânea de dois fenômenos ordinários, que os índices pluviométricos na região atingiram patamares de dilúvio.